sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Para esse tempinho...





Os Sonhadores (The Dreamers, EUA, 2004)

Destaque para a maravilhosa Eva Green que viria a ser a Bond Girl amada pelo agente.


Numa idade em que a maior parte dos cineastas deixa a inquietação de lado e se acomoda em trabalhos burocráticos, Bernardo Bertolucci parece ir na direção contrária e filma cada vez com mais paixão adolescente. De conformista o cineasta parece não ter nada, como nos diz BELEZA ROUBADA, ASSÉDIO e agora o maravilhoso OS SONHADORES.

Dos filmes mais belos dos últimos anos e dos melhores que Bertolucci realizou em sua brilhante carreira, OS SONHADORES é daquelas obras que permanecem, caso você se deixe impregnar por ela. O tesão que o cineasta exibe aqui é contagiante. O filme me tirou o sono por vários dias, e não só pela vênus escultural que é a Eva Green. O tesão está principalmente em sua narrativa suculenta, seu bom gosto extremo, sua inteligência e seus movimentos de câmera elegantes. Aliás, Bertolucci tem a câmera mais elegante da atualidade. É incrível como o cineasta consegue filmar resíduos corporais como sêmen, cuspe, urina e sangue, sem nunca resvalar no gratuito e no grotesco.

Aqui temos Bertolucci mais uma vez imerso nas agruras da juventude. Se bem que não pode ser chamado exatamente de agrura passar dias em uma mansão parisiense decandente, bebendo vinho, fazendo sexo e discutindo cinema.

É o que fazem os três protagonistas de OS SONHADORES. Enquanto seus pais viajam e o mundo agoniza lá fora, os irmãos Theo (Louis Garrel) e Isabelle (Green) convidam o americano Matthew (Michael Pitt), com quem compartilham o amor pelo cinema e a palidez de quem passa a maior parte da vida em escuras salas de exibição, a ingressar em seu mundo particular, onde não existe trangressão porque não existe regra, a não ser a de nunca revelar ao mundo externo a própria existência deste sub-universo. E é claro, a obrigação em pagar as prendas, de formas cada vez mais provocantes, que acompanham as perguntas sobre filmes.

O filme tem início durante os protestos pela expulsão de Henri Langlois do comando da Cinemateca Francesa que este mesmo fundou, pelo recém-instituido Ministro da Cultura do governo De Gaulle, Andre Malraux. Misturando cenas de arquivo com tomadas recentes (inclusive reaproveitando Jean-Pierre Léaud, que aparece tanto hoje quanto ontem, nas cenas de arquivo), Bertolucci parece estar filmando outro planeta. Onde mais o povo iria às ruas para protestar contra algo relacionado a cinema? No Brasil é que não. Quando Collor acabou com os incentivos (e a viabilidade) do cinema nacional, vários chiaram mas ninguém protestou publicamente. Vendo não só o movimento dos cinéfilos como também a forma que apreciavam os filmes na época deixam um gosto ao mesmo tempo doce e amargo na boca. Entre maratonas com a filmografia completa de Nicholas Ray, discussões sobre o último Samuel Fuller e reprodução da famosa corrida dentro do Louvre de BANDE À PART de Godard, os protagonistas respiram cinema. Em off, Matthew explica o porquê dos cinéfilos que se prezam lutarem para sentar na primeira fileira da sala de exibição, "...para assim receber a imagem primeiro, ainda pura, sem que esta tenha sido contaminada pelos olhos dos demais". É das maiores declarações que já vi sobre o cinema, e não é a única do filme.

Bertolucci até mesmo introduz a mais famosa das disputas do mundo da cinefilia: quem é melhor, Keaton ou Chaplin? E a cena em que Isabelle reproduz os gestos de Greta Garbo em RAINHA CRISTINA, reconhecendo pelo tato as formas do quarto, é de chorar.

Não só de cinema trata OS SONHADORES, ainda que a paixão pela arte esteja em cada fotograma. Bertolucci aproveita para rever antigas inquietações: de ÚLTIMO TANGO EM PARIS e ASSÉDIO aproveita a relação entre os protagonistas e espaço físico; de LA LUNA, a temática incestuosa; de ANTES DA REVOLUÇÃO, os cortes bruscos e imprevisíveis; de BELEZA ROUBADA, o frescor da narrativa; de 1900 e O ÚLTIMO IMPERADOR, o background político.

É impressionante a forma como o cineasta trata os elementos cênicos para visualizar a condição dos personagens. Repare nos espelhos sempre triplos que parecem estar em todos os ambientes do casarão e pense em quanto isto nos diz sobre Isabelle, por exemplo.

Mas talvez, o que seja mais contundente em OS SONHADORES é o olhar crítico que Bertolucci deposita sobre aqueles jovens (sendo ele próprio um deles) que queriam mudar o mundo, idealizando-o a partir, parece dizer o artista, de uma visão romanceada e, porque não, cinematográfica da realidade. O mundo particular dos protagonistas é um mundo de certa forma infantil, uma espécie de Terra do Nunca, não permitido aos adultos repressores. O sexo surge como se fosse uma brincadeira de criança, sem maldade ou perversão, evolução natural dos jogos infantis, bombardeados de hormônios em ebulição. E todos agem como se estivessem interpretando, mimetizando a atitude cool de seus ídolos. Em determinado momento, Isabelle afirma, ao ser questionada por Matthew, que morreria caso seus pais descobrissem sobre sua relação com o irmão. A inconsequência das afirmações e dos atos acaba sendo mais significativa quando passa a abranger os eventos externos, no caso os protestos de maio de 68. Só mesmo uma brincadeira maior ainda para suplantar a que os jovens amantes praticam dentro da casa.

É quando o filme finalmente abandona aquele espaço delimitado para chegar às ruas que Matthew abandona igualmente as reações infantis e adota uma postura sensata e madura, coisa que os irmãos se recusam a fazer. E o que Matthew vê - e o público vê com ele - é a visão que Bertolucci tem hoje dos eventos, e daí o aspecto (auto) crítico.

E nos faz com isso, freaks que somos, que nos critiquemos também. É nesse ponto que o filme toca fundo, contrapondo o tesão pela razão, como se nos cutucasse e nos dissesse, "Agora você é um de nós".

Um comentário:

Dan disse...

Esse filme é muito bom, gostei de perceber que você tem um bom gosto cultural, parabéns.
Danilo